Thursday, November 02, 2006

Essa rua tem história


Do Centro Cultural Dragão do Mar, olho a rua que se estende, não muito longe. Mas o que houve com ela, encurtou? Ou encurtaram meus passos, quiçá minha visão de adulta? Nos meus tempos de menina esta rua era imensa. Pois por ela meninei, logo que cheguei da minha cidade Natal, com pouco tempo de vida. Aos treze anos me fui, olhos molhados, rumo ao desconhecido. A parte boa da minha vida e o maior espaço de tempo também, devo dizer que vivi na casa de número 410 da Rua Dragão do Mar. Foi esta a rua que me viu ensaiar, em câmara lenta, os primeiros passos trôpegos e já incertos. E acalentou os indecisos sonhos de uma adolescente insegura e tomada por paixões fáceis, até pela rua. Lá minha alma terrena conheceu o primeiro amor, nunca retribuído. Também foi ali que derramei a primeira lágrima ao ouvir no rádio antigo de meu pai uma canção do Vinícius falando da saudade e da tristeza de partir:
“Ah, vontade de ficar, mas tendo que ir embora...ai, que amar é se ir morrendo pela vida afora, é refletir na lágrima um momento breve de uma estrela pura cuja luz morreu, de uma noite escura triste como eu...”
Olho a Praça do Avião, hoje tão festiva e iluminada e lembro que era lá que meu pai nos levava, a mim e aos irmãos, nas tardes de domingo, a passear de velocípede. Naquele tempo a rua Dragão do mar era marcada por um apartheid que eu não entendia muito bem. No primeiro quarteirão, a partir da Capitania dos Portos, havia uma zona de prostituição, onde reinavam a famosa Maria Cabelão e os homossexuais Elvis Presley e Zé Tatá. Esta era uma zona socialmente proibida para crianças e adolescentes. Mas se tínhamos mesmo que passar por lá, deveríamos descer a calçada, pois era até pecado olhar as casas, os adultos diziam. O próximo quarteirão, da Travessa Itapipoca até a Rua Tigipió, era onde ficava a “calçada da Jonhson”, o reduto da meninada, para os jogos de bila, arraia, manjô e macaca – hoje essas brincadeiras têm outros nomes que me recuso a traduzir por saudade e despeito. A partir dali, a rua subia num morro de areia. De um lado, um pântano e um córrego, onde as lavadeiras lavavam as roupas dos que ficavam embaixo, na parte calçada. Do outro lado, um terreno murado, onde nos deparávamos com inscrições obscenas e desenhos pornográficos. No inverno, as águas da chuva desciam vertiginosamente ladeira abaixo, indo desembocar num esgoto – era a nossa cachoeira em miniatura. O melhor programa da época: tomar banho de chuva e observar os caracóis indolentes na sua caminhada interminável e os peixinhos ágeis, que nos escapavam das mãos. Era ali que deixávamos sem rumo os barquinhos de papel que a correnteza levava.
Rua Dragão do Mar, túnel dom tempo. Viajo nas lembranças e na dolorosa certeza de que não se pode preservar ao menos os cenários dos tempos bons da infância. Novas cenas e novos personagens invadiram minha vida. Mas quando durmo e sonho, nem Freud explica o porquê de, na maioria das vezes, estarem lá, todos na casa grande, onde hoje cabe bem mais gente - como se eu nunca me tivesse me apartado de Iracema.


Nilze Costa e Silva

Cidade da Criança



Nilze Costa e Silva

Num dia qualquer da minha adolescência saí para namorar e ficamos lá, comendo pipocas. Nem demos pipocas aos animais. Pipocas haviam, muitas. Eles é que não estavam mais lá. Entre aconchegos e juras de amor, divaguei, fugi, viajei. Meus olhos divisaram todo o parque, como se numa outra dimensão. A dimensão do passado. Deixei longe o meu namorado.
A Cidade da Criança (ou Parque da Criança, como também é conhecido), nos meus tempos de menina era ornamentada por frondosas árvores, onde os pardais entoavam um canto estridente que se ouvia de uma ponta a outra do arco-íris. Se alguém não ouvia era porque não queria. Os pássaros estavam lá e o arco-íris também.
A cidade da minha criança, da criança que fui e que tantas vezes ainda sou, era um local alegre, com parques de diversão, sorvetes coloridos, maçãs do amor, rodas gigantes e muitos, muitos casais de namorados. Papai Noel recebia as chaves de Fortaleza e lá pousava, vindo dividir seus brinquedos com a meninada. Haviam animais presos nas jaulas, onças, tigres, macacos e as mais belas aves com suas plumas coloridas a nos encantar a vista.
Já faz tanto tempo... O namorado se foi, outros vieram. Hoje sinto-me madura e lúcida, mas o parque ainda está lá. Os bancos, as árvores e os pardais continuaram. A cidade da criança foi se transformando e ficando triste. Num outro momento, as crianças da Escolinha Alba Frota ainda brincavam de três três passarás. Se não for o da frente há de ser o de trás. Algumas se arriscavam a desfilar sobre a pérgula do lago, que passou a ter um cheiro esquisito e desagradável. As folhas das árvores escureceram com a poluição dos ônibus que circulam pela Praça Coração de Jesus, em frente. Por trás do gradil que rodeia o parque (que parque?) alguns seres pequeninos espiam. São as crianças sem teto e sem lar. Têm fome, assaltam, saqueiam, cheiram cola. Fim de tarde, a Escolinha Alba Frota encerra mais um dia de aula. Sadios e risonhos, os pequenos estudantes retornam ao lar.
À noite, outros meninos e meninas invadem o parque. São buliçosos e estridentes como os pardais do dia. Vêem arco-íris e sobem por eles. Percebem sorvetes coloridos sem poder alcançá-los, na ilusão da cola. Dão piruetas, invadem a escolinha e roubam. A Cidade da Criança é só deles. Cansados da noite, correm aos bandos e vão dormir, pelos bancos das praças, que já é outro dia.
Hoje, a escolinha não mais está lá. Teve que se mudar, pois as crianças de dentro eram ameaçadas pelas de fora, que não tinham os mesmos direitos. Então a Prefeitura resolveu que o parque se transformaria num pólo aglutinador das várias entidades que defendem a cidadania daqueles meninos e meninas abandonados. E foram construídas casinhas coloridas onde funcionam a Fundação da Criança da Cidade, O Conselho Tutelar, O Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente. Vê-se poucas crianças por lá. A cidade, agora com casinhas tão coloridas, parecendo ter vindo dos contos de fadas, não é mais delas, embora digam que é para elas. Ainda estão lá fora a mendigar, a roubar, a delinqüir, entregues ao ócio do abandono.
Cidade da Criança... Hoje, tantos anos passados, eu queria era mesmo poder dizer que ela permanece bonita como antigamente. Reunir as pessoas, juntar os pedaços do passado como um quebra-cabeça que se concertasse e colocasse no lugar todos os cacos quebrados... Ver novamente o lago limpo e cheiroso, as árvores viçosas, os animais vaidosos, expondo seus reluzentes pêlos e plumas e as crianças felizes espreitando-os por entre as grades. Tenho medo que nem os pardais fiquem e partam em revoada para outros locais mais alegres e arejados. Que fujam com medo do barulho, da poluição, das injustiças. Que partam para bem longe, a lamentar com seu canto triste que esse parque, essa cidade, já não é mais da criança.

O PROFETA


Nilze Costa e Silva

Um vidente chamado Jucelino Nóbrega da Luz fez duas previsões para o Brasil: uma ruim e a outra péssima. A ruim: Lula não será reeleito presidente do Brasil. A péssima: entre 1º e 25 de novembro de 2013 uma tsunami atingirá o Nordeste, inclusive Fortaleza. Essas previsões do médium foram feitas em dezembro do ano passado. Segundo disse nas diversas entrevistas que tem dado por aí, ele sonha e é orientado a avisar às pessoas, instituições ou governos sobre o que irá acontecer.
Em 2013 eu não sei se vou estar viva. Mas por via das dúvidas, já tinha planos de me mudar para Serra de Maranguape, onde o maravilhoso poeta Manoel Bandeira esteve em meados do século passado, não para fugir de uma tsunami, mas à procura de clima aprazível e adequado para tratar-se de uma tuberculose.
Na maioria das vezes os profetas costumam usar as evidências e a intuição para se saírem bem em suas predições. Sempre erram mais do que acertam. Uma das famosas que muito errou foi a Mãe Dinah. Neste ano apostou no Brasil como hexacampeão, caso não sofresse “influências monetárias” da Alemanha. Errou. Nem um nem outro lograram êxito.
Com relação às eleições de 2006, a profecia de Jucelino contraria todas as pesquisas que apontam Lula como futuro Presidente do Brasil. E se ele for reeleito, como vai ficar o vidente? No mínimo saberemos que não haverá tsunami alguma em nossa cidade amada, somente a alegria, esperando que as instituições democráticas respeitem a vontade do povo, confiante de ter eleito o melhor. E que não ousem dizer que Lula foi eleito “por um povo analfabeto e burro”. Seria desrespeitar demais o eleitorado consciente do nosso País.
Mas voltando ao tema inicial e tendo em vista as previsões dos institutos de pesquisa para o dia 29 de outubro, já desarrumei minha bagagem. Digam ao povo que eu fico na minha linda Fortaleza de belas e irresistíveis praias. E deixa o “homi” trabalhar!

Nilze Costa e Silva é escritora e coordenadora da ONG NAVE.