Sunday, April 27, 2008

Água gelada em dente cariado

Ao poeta Mário Gomes

A Praça do Ferreira, toda ornamentada com enfeites natalinos, já não cabe mais nos sonhos do poeta, nem mostra o que ele quer ver. Em sonhos, vê uma praça com muitos bancos, repleta de passantes, algumas árvores frondosas e pássaros em número suficiente para enfeitar o mundo dos loucos. Dali fazia seu escritório ambulante, onde a poesia abrolhava num dos bancos da praça, nas tardes amenas. Uma torrente de palavras e energia neutralizava tudo o que não era bom, tudo o que não era justo, como água gelada num dente cariado. A realidade nunca se enquadrou em seus pensamentos, nunca guiou seus sonhos, nem mostrou-lhe caminhos.
Lá ia ele, todo de terno branco, gravata e lenço vermelho, alguns livros debaixo do braço. Os dias eram coloridos, tatuados de criação poética. Às vezes doce e humilde, às vezes megalomaníaco, julgava-se com poderes divinos. “Sou imortal, eterno, invulnerável, sou mais importante e superior ao ouro sou mais forte do que o aço, o ferro, não tenho idade, sou irmão gêmeo de Deus”.
De um dia para o outro o cáustico poeta, que “beijou a boca da noite e engoliu milhões de estrelas” ficou apenas com os gritos do seu espírito. Roga pragas, solta impropérios, esconjura uns e outros passantes em torno da Praça. Anda no sol e na chuva, conversa com postes de iluminação pública, fala com fantasmas que achincalham sua pouca lucidez.

- Bicho ruim, cão dos infernos, viado!

Relâmpagos e trovões ensombream-lhe a noite. Espanta mosquitos, chuta as pedras do caminho, revoltado com as pessoas que dele se afastam com medo e vergonha. Dias sem cor, visão turbada pelo alucinante das luzes. Acorda na rua, coça os olhos, pisca para enxergar o sol da manhã que teima em nascer. Atroz mesmo era despertar e não ver mais a velha mãe de encanecidos cabelos a preparar-lhe o café da manhã. Ao lado da xícara, um copo com água coberto com um pires, contendo uma drágea do remédio controlado que teria que tomar diariamente.

- Menino, você não beba hoje não! Quem toma remédio não bebe.

Tinha vontade de dizer que não bebesse nunca mais. Mas tinha esperança de que pelo menos hoje o filho seguiria seu conselho. Na madrugada, tinha que se levantar da rede com muito esforço para abrir-lhe a porta. Mais uma vez chegava bêbado, sorriso imenso nos lábios e um verso escrito num guardanapo amassado. Não deixava a mãe dormir enquanto não lesse o poema. Ela ria em certo trecho que falava:

Ah! Como dói

Água gelada no dente cariado!

Onde andaria sua velha, ela não queria morrer e deixar o filho ao relento. Para que voltar a casa se não mais era abrigo, aconchego, colo de mãe onde se ajoelhava para pousar a cabeça fatigada? O diabo da poesia não mais lhe vinha à mente. Só os fantasmas malditos, as sombras com garras que sobre ele avançam. Não adianta fugir. Num rasgo de lucidez tira do bolso do paletó surrado e sujo um papel várias vezes desamassado, onde está escrito: “A pedra não nasce, não cresce, não morre. Mas que adianta ser uma pedra? Prefiro ser o homem que morrerá um dia sem ter inveja da pedra”.