Monday, March 01, 2010

Para lembrar Maria de Araújo


Livro de Nilze Costa e Silva sobre a vida de Maria de Araújo, famosa beata que habitou a cidade de Juazeiro do Norte no final do século XIX, mescla ficção com registro histórico

Thiago Barros
thiagobarros@opovo.com.br
especial para O POVO

26 Fev 2010 - 01h03min


Onde a realidade é tão rica e fascinante que a literatura tem que se render, sem prejuízo, a sua verdade & é lá que Nilze Costa e Silva vai buscar o mote para seu mais recente livro, intitulado A Mulher sem túmulo - vida romanceada de Maria de Araújo, cujo lançamento está marcado para hoje à noite, no Armazém Cultural, com direito a performance interativa. Na obra, ela traz à tona o famoso caso da beata que, ao receber a hóstia do padre numa cerimônia religiosa, teve ela transformada em sangue dentro de sua boca.

Não que Nilze se limite a fazer um registro histórico. Na verdade, pode-se dizer que muito do diferencial do relato está precisamente naquilo que ela vai construir em cima dos fenômenos ocorridos em Juazeiro do Norte, nos fins do século XIX, e que deram ensejo a um dos episódios mais controversos da história do Ceará, o chamado ``Milagre de Juazeiro``. Para isso, a personagem principal desses acontecimentos, Maria de Araújo, volta à vida como a protagonista da obra. ``É uma biografia romanceada``, explica a autora, cujo romance de estreia foi No Fundo do Poço, de 1984. Desde lá, ela vinha se concentrando nos gêneros conto, crônica e ensaio. Com seu livro mais recente, ela interrompe esse ciclo para retomar o estilo romanesco, agora com ares documentais.

E esse retorno não foi fácil. Segundo Nilze, a escassez de material escrito sobre a beata foi uma dificuldade que teve que superar no processo de pesquisa. Para fazê-lo, ela revela ter acessado os inquéritos da época e alguns registros feitos pelo Padre Cícero, figura que teve grande influência sobre o comportamento de Maria de Araújo, tendo, inclusive, acolhido ela em sua casa durante um tempo, além das teses e ensaios sócio-historiográficos que os polêmicos acontecimentos nos quais a beata se envolveu provocaram. Conduzida pelas mãos hábeis da escritora que lhe refaz a jornada, ela é retratada desde a sacrificada infância, marcada pela orfandade e pela necessidade de trabalhar por seu sustento desde cedo, até os acontecimentos que culminariam no famoso milagre. Apesar de verossímil, o relato se resguarda dentro de uma certa ``liberdade poética``.

Esse é, pois, o ponto que oferece mais possibilidades à história, por si só já banhada em uma atmosfera para além do palpável. Acentuando a mescla de elementos reais e ficcionais, ao longo da trama de A Mulher sem túmulo - vida romanceada de Maria de Araújo, a autora apresenta personagens que viveram realmente andando lado a lado com outros que brotaram de sua imaginação. ``Mas 90% deles são reais. Os demais servem de suporte, como as rezadeiras, por exemplo``, adverte. Junto ao mítico religioso padroeiro do Cariri, coadjuvante de luxo da obra, foram incluídos na trama Dona Quinô, a mãe de Padre Cícero, Angélica, irmã dele, e José Marrocos, fiel defensor do caráter sobrenatural do milagre da hóstia. Todos abordados a partir de um enfoque que explora o universo psicológico de cada um, em meio às atribulações recorrentes.

Ainda assim, mesmo alguns dos personagens que viveram de fato aparecem envolvidos em situações e diálogos que, por absoluta impossibilidade de serem resgatados, tiveram de ser inventados. É, no entanto, um erro pensar que a simples necessidade tenha sido o único motor a impulsionar o gênio criativo de Nilze. Ela deixa isso claro ao contar o exemplo de como tomou uma situação imaginada para abordar a relação de Maria com o sangue. Uma relação retomada em toda sua intensidade simbólica. ``É nesse sentido que eu falei sobre a primeira menstruação dela, como aquilo não deveria ser um tabu no interior do Ceará daquela época...``, revela a escritora, lembrando que, durante a segunda metade do século XIX, quando viveu a protagonista da obra, a cidade de Juazeiro do Norte era apenas um povoado. ``Um nada``, para usar suas palavras.


SERVIÇO

A MULHER SEM TÚMULO - VIDA ROMANCEADA DE MARIA DE ARAÚJO - lançamento do livro de Nilze Costa e Silva foi no Armazém da Cultura (Rua Jorge da Rocha, 154 & Aldeota). Preço médio: R$ 38. Outras informações: 3224 9780.

Friday, February 12, 2010

Monday, February 08, 2010

A uma certa Maria

Quero falar de uma Maria

Ausente, escondida

feito coruja nos campos

rasga mortalhas das noites

distante do mundo

sem saber ler nem escrever seu nome


Em sua infância tão pobre

um amiguinho invisível ensinou-a a inventar brinquedos

amarelos, verdes, azuis...

Eram brinquedos tão lindos!

Ninguém, senão Maria, tinha aquele privilégio

de brincar com o menino Jesus


Mas um dia Ele partiu...

deixando-a envergonhada de ter crescido assim

com uma sina obstinada, tatuada, corpo e alma

para levar a mensagem ao povo de Juazeiro

Teve chagas pelo corpo

teve a bocas alagada do sangue da hóstia consagrada

O sangue corria dos lábios, pela língua e pelas mãos

pelos paninhos brancos que o padre limpava o chão


Maria de Araújo!

Quem te fez assim tão forte

Sozinha na noite escura da cidadezinha pobre

desalentada, desacreditada pela Santa Inquisição?


Ah, essa Maria de tantas dores...

Insubmissa às leis humanas

deu comunhão a dois padres da primeira comissão

Insultada, perseguida pela Igreja arrogante

que não acreditava que Deus amava aquela mulher

pobre, negra e analfabeta.


O bispo não concebia que o divino condenava

a tripla discriminação

e escolheu a beata, chamada Maria de Araújo

pra transmitir ao seu povo sua mensagem de amor

como escolhera outrora

os tão pobres pescadores

homens analfabetos que se tornaram apóstolos

da fé que Jesus pregou


A beata do milagre afrontou a arrogância

da segunda comissão

E quando foi inquirida e lhe dada a hóstia na boca

falou com toda ousadia:

“Jesus Cristo tá dizendo, que a hóstia não sangrou

pois os padres da comissão não estão em estado de graça

pra me dar a comunhão”


Por isso foi torturada,

Presa na sozinha cela da Casa de Caridade

Ao voltar pra sua terra

Morreu triste e esquecida

Sem véu, sem nome, sem lar

Padre Cícero ordenou dar-lhe enterro merecido

Mas mesmo depois de enterrada

ainda foi injustiçada

Teve o túmulo violado

como quem nunca nasceu

Mas um dia Juazeiro vai lembrá-la com amor

e dar-lhe a paz merecida

sabendo que Jesus Cristo

amou aquela mulher ousada e destemida


Que assim seja!



Nilze Costa e Silva

Thursday, January 28, 2010

MULHERMAR

Lagoinha - CE


Amanheço, acordo
Desperto em Lagoinha
Durmo, alvoreço
Me enlevo, transpareço
Abro os olhos e sonho

Menina e mulher, mulhermar
Ando sobre dunas quentes
Que me queimam os pés
Choro ondas
Retorno à infância

Iracema menina
Lagoinha mulher
Os quatro cantos de minhas paredes
São rodeadas de mar
Meus cabelos são algas marinhas
Quando durmo e me banho de luar

Lagoinha me toma e me abraça
Me invade e me alaga
Me torna lua
Solitária e nua.



Tuesday, January 12, 2010

A mãe do presidente

Assisti ao filme ``Lula, o filho do Brasil`` quase sempre com lágrimas nos olhos. O filme, na realidade, tem o mérito de homenagear uma mulher valente e voluntariosa. Uma mulher guerreira, modelo de superação da extrema pobreza, da fome, do exílio forçado, do abandono e da violência doméstica.

Dona Lidu era uma mulher teimosa. Saiu de Garanhuns, agreste de Pernambuco, região castigada pela seca, carregando oito filhos em busca de uma vida melhor em São Paulo. Lá morava o marido, que a largou com um filho na barriga. Entrou com seus rebentos em um caminhão pau-de-arara e garantiu a todos eles que a vida iria melhorar. ``É só teimar``, dizia ela. Enfrentando poeira, calor e fome, trazia no colo um menino que se tornaria presidente do maior país da América Latina.

Em Santos, Lidu teve que lutar, enfrentar enchentes e brigar para defender seus filhos do pai violento e alcoólatra. Os filhos pequenos tornam-se vítimas do trabalho infantil e começam a trabalhar como ambulantes, engraxates e empregados domésticos para ajudar no sustento da família. Mas Dona Lidu teimava em manter a família unida e honesta. Lidu era dessas pessoas otimistas, confiante no futuro. Foi ela quem, pessoalmente, matriculou o futuro presidente no curso de torneiro mecânico e estava lá aplaudindo quando ele recebeu o certificado.

Tinha sempre um abraço e um afago, na alegria e na tristeza, inclusive quando ele perdeu um dedo da mão em um acidente de trabalho. Quando Lula enfrentou a dor de ver mortos sua primeira esposa e o filho, ao mesmo tempo, ela estava lá, consolando-o. Lula entrou no movimento sindical contra a sua vontade. Durante a ditadura, a mãe chorava com a possibilidade de sua prisão. O filme nos enche de esperança. É um grande exemplo para os brasileiros, a provar que com honestidade, trabalho e inteligência um menino pobre e nordestino pode se tornar um líder operário e até chegar à presidência da República.

Artigo - Jornal O POVO
(
09 Jan 2010)

Wednesday, November 25, 2009

O Cravo e a Rosa

"O cravo brigou com a rosa

Debaixo de uma latada

O cravo saiu ferido

E a rosa despedaçada"

(Cantiga de roda)


A canção de roda serve como metáfora para ilustrar a situação real em que o masculino (cravo) e o feminino (rosa) se ferem no dia a dia, se maltratam, se despedaçam, ambos terminando feridos, tantas vezes de morte.

Existe um ser ferido na necessidade de reafirmar e provar, em altos brados, que é macho e não homem. Por outro lado, está lá a rosa, desvalorizada em relação ao mundo masculino.

Os modos de educar e socializar meninos e meninas pouco mudaram em relação aos séculos passados. Consideradas inferiores e descartáveis, as mulheres ainda não alcançaram o status de cidadãs, na plenitude dos direitos humanos. Percebe-se isso na divisão sexual do trabalho, onde os salários são mais vantajosos para os homens. Percebe-se ainda na divisão do trabalho doméstico, onde este se acumula, para o sexo feminino, junto ao trabalho remunerado fora do lar.

A discriminação contra a mulher evidencia-se mais tragicamente na situação de dependência afetiva, psicológica e financeira, aliadas à baixa auto-estima, que a torna vulnerável ao fenômeno cada vez mais crescente da violência doméstica.

A Lei Maria da Penha foi um advento importante para coibir a agressão contra as mulheres. Mas ainda não conseguiu mudar a mentalidade do homem e da mulher quando educam seus filhos e filhas. Elas não são educadas para serem protagonistas da própria história. Ao contrário, são educadas para a subalternidade e inferioridade. Por isso, grande parte delas não desenvolvem a capacidade de se auto-governarem.

A autonomia exige consciência, capacidade de escolha, liberdade de pensamento e de ação. Mais que isso, exige uma série de atitudes de afirmação de si na relação com o mundo e com os outros.

A discriminação inferioriza as mulheres de diferentes classes sociais e níveis de escolaridade, pois não se trata de um fenômeno de classe, mas cultural. É uma condição que se esteia em valores e crenças enraizados, que antagonizam homens e mulheres como se fossem indivíduos de mundos diferentes.

A autonomia das mulheres no mundo atual é condição indispensável para a eliminação do machismo e da violência sexista.


Nilze Costa e Silva

Tuesday, July 14, 2009

Convido os amigos e amigas para este evento

Quarta Literária Especial

Convidado: Nilze Costa e Silva
Dia: 15 de julho de 2008 (quarta-feira)
Horário: 19h30
Local: Salão de Eventos da Biblioteca Pública Gov. Menezes Pimentel
Entrada franca

Saturday, July 11, 2009

CENTRO CULTURAL DO BNB
- OUVIR DIZER -

Dia 14 DE JULHO, TERÇA, 15h30 às 16h30

Leituras dramatizadas de textos de autores da literatura brasileira e universal.

Não percam o grande bruxo do teatro cearense e brasileiro!

A platéia apreciará a leitura dramatizada por Ricardo Guilherme
de trechos da obra de Nilze Costa e Silva.

Sunday, May 31, 2009

Quem era Augusto Pontes?


Se me perguntassem quem era Augusto Pontes, essa figura carismática da cultura cearense que Deus levou recentemente para outra esfera, eu repetiria tudo que já se falou dele, acrescentando apenas isso: era um homem que acreditava nas pessoas. Digo isso porque não devo ter sido uma privilegiada com relação à sua fé no ser humano. Eu não fiz parte do seu círculo de amizades, nem freqüentei suas rodas de boemia. Era apenas uma admiradora distante. Fã mesmo. Eis que um dia ele se torna presidente da Fundação Cultural de Fortaleza. Nesta época eu me encontrava um tanto distante da escrita, há anos não publicava, metida com movimentos sociais, leitura e estudo. Instigada pelo curso de especialização em Teoria da Literatura, pensei em publicar minha monografia, Mulheres de Papel, um ensaio sobre o personagem feminino através dos vários estilos de época. O livro ficou pronto e eu sem dinheiro para publicar.

Então, pensei em ir falar direto com o Augusto Pontes na Fundação Cultural. Talvez uma ousadia, por ele não me conhecer e ser uma pessoa de grande relevância no panorama cultural local. Anunciei-me já pensando: ele não vai me receber, por que iria? Mas ele abriu-me a porta sem protocolo, me mandou sentar e fui logo falando que estava ali porque ia desistir da minha carreira literária devido a total falta de dinheiro para publicar minhas obras. Eu falei, falei, e ele não quis muito papo. Só respondeu: “Jamais! Você não vai desistir da sua carreira literária por falta de incentivo”. Prometeu-me uma resposta dali a 15 dias.

Não me perguntem como foi nem se isso é possível. Mas eu saí da Fundação aturdida com um bolo de dinheiro que mal cabia na minha bolsa. Só foi o tempo de reunir meus escritos e entrar na primeira gráfica. Com pouca experiência, a edição saiu péssima, mas com bom conteúdo.

Para mim somente uma coisa importava: Aquele “cara” impulsivo, mais do que ceder a minha chantagem literária, acreditou na jovem escritora emergente. Eu nunca mais deixaria de escrever.

Nilze Costa e Silva

Sunday, April 27, 2008

Água gelada em dente cariado

Ao poeta Mário Gomes

A Praça do Ferreira, toda ornamentada com enfeites natalinos, já não cabe mais nos sonhos do poeta, nem mostra o que ele quer ver. Em sonhos, vê uma praça com muitos bancos, repleta de passantes, algumas árvores frondosas e pássaros em número suficiente para enfeitar o mundo dos loucos. Dali fazia seu escritório ambulante, onde a poesia abrolhava num dos bancos da praça, nas tardes amenas. Uma torrente de palavras e energia neutralizava tudo o que não era bom, tudo o que não era justo, como água gelada num dente cariado. A realidade nunca se enquadrou em seus pensamentos, nunca guiou seus sonhos, nem mostrou-lhe caminhos.
Lá ia ele, todo de terno branco, gravata e lenço vermelho, alguns livros debaixo do braço. Os dias eram coloridos, tatuados de criação poética. Às vezes doce e humilde, às vezes megalomaníaco, julgava-se com poderes divinos. “Sou imortal, eterno, invulnerável, sou mais importante e superior ao ouro sou mais forte do que o aço, o ferro, não tenho idade, sou irmão gêmeo de Deus”.
De um dia para o outro o cáustico poeta, que “beijou a boca da noite e engoliu milhões de estrelas” ficou apenas com os gritos do seu espírito. Roga pragas, solta impropérios, esconjura uns e outros passantes em torno da Praça. Anda no sol e na chuva, conversa com postes de iluminação pública, fala com fantasmas que achincalham sua pouca lucidez.

- Bicho ruim, cão dos infernos, viado!

Relâmpagos e trovões ensombream-lhe a noite. Espanta mosquitos, chuta as pedras do caminho, revoltado com as pessoas que dele se afastam com medo e vergonha. Dias sem cor, visão turbada pelo alucinante das luzes. Acorda na rua, coça os olhos, pisca para enxergar o sol da manhã que teima em nascer. Atroz mesmo era despertar e não ver mais a velha mãe de encanecidos cabelos a preparar-lhe o café da manhã. Ao lado da xícara, um copo com água coberto com um pires, contendo uma drágea do remédio controlado que teria que tomar diariamente.

- Menino, você não beba hoje não! Quem toma remédio não bebe.

Tinha vontade de dizer que não bebesse nunca mais. Mas tinha esperança de que pelo menos hoje o filho seguiria seu conselho. Na madrugada, tinha que se levantar da rede com muito esforço para abrir-lhe a porta. Mais uma vez chegava bêbado, sorriso imenso nos lábios e um verso escrito num guardanapo amassado. Não deixava a mãe dormir enquanto não lesse o poema. Ela ria em certo trecho que falava:

Ah! Como dói

Água gelada no dente cariado!

Onde andaria sua velha, ela não queria morrer e deixar o filho ao relento. Para que voltar a casa se não mais era abrigo, aconchego, colo de mãe onde se ajoelhava para pousar a cabeça fatigada? O diabo da poesia não mais lhe vinha à mente. Só os fantasmas malditos, as sombras com garras que sobre ele avançam. Não adianta fugir. Num rasgo de lucidez tira do bolso do paletó surrado e sujo um papel várias vezes desamassado, onde está escrito: “A pedra não nasce, não cresce, não morre. Mas que adianta ser uma pedra? Prefiro ser o homem que morrerá um dia sem ter inveja da pedra”.

Saturday, April 28, 2007

Conto de fada

A caixa era uma grande arca
onde a Esperança me acordou
de um século de paixão
Nenhum príncipe apareceu
para ressuscitar os meus lábios
com o beijo da aurora
“Campineiro do meu pai
não me corte os meus cabelos ...”
Vaguei pela noite afora
Minha mãe me penteou,
Descobri sete anõezinhos
na Caixinha de Pandora
Espelho, espelho meu
haverá coisa mais linda
que uma noite de lua cheia?
Minha bruxa feiticeira
Porque que me envenenou?
Primeira menstruação, perdi meu sapatinho
E o encanto se desfez:
o príncipe, virou lobo-mau
O esposo que tive morreu
Botei meu vestido de noiva
o meu diadema de flores
e lá me pus na janela:
“Quem quer casar com a senhora baratinha
que tem fitas no cabelo e dinheiro na caixinha”?
(Nilze Costa e Silva)

Sunday, February 04, 2007

Grafites


Meu caderno de infância tinha uma casinha feliz. Um cacto mal rabiscado, do lado esquerdo um sol, ao fundo uma bananeira com um coração flechado que eu nem sabia de quem. O caminho traçado a lápis ia dar lá no jardim, onde inventei passeios de portas abertas para um lago rodeado de grama verdinha, pincelado num belíssimo campo florido. Nesse cenário, nunca podia faltar um gato de rabinho enrolado e olhos arregalados, espreitando maliciosamente por entre os pés de “nove-horas”, com suas flores coloridas.
Meu caderno de infância tinha muitas casinhas felizes. Por trás de uma delas, subia um coqueiro alto indo bater lá no céu. Juntava-se às estrelas por entre todas as nuvens que ameaçavam chover. Chovia quando eu queria, nos desenhos que eu fazia. Sol e lua se encontravam e tudo se harmonizava sem nenhuma explicação. Para quê explicação?
A bandeira do Brasil flamejava milimetricamente, nivelada pela régua gasta e meu com(passo) de criança, que se alvoroçava de amor pelo País que me deu origem. O pau da bandeira era fincado entre flores e margaridas que eu ainda não sabia desfolhar, eternizada no meu bemquerer.
Com meu grafite eu desenhava o mundo inteiro! O que estava errado, eu podia apagar. Mas nunca apaguei estrelas. Quantas vezes me desenhei na noite a olhar as estrelas num céu limitado pelo espaço das páginas, mas tendo a certeza de que alguém no alto estaria a me olhar... Na minha imaginação de menina, era Deus quem me espreitava.
O vento? Nunca o soube desenhar. Mas no meu auto-retrato, os fios dos meus cabelos se esvoaçavam ante a brisa de uma infância feliz. Escrevia embaixo: EU. Todos os contornos coloriam cenas abertas e um final feliz. THE END.
Meu caderno de infância só nunca me revelou o tamanho da saudade que sinto agora. Nem da quase impossibilidade que tenho de desenhar o passado. Lá deixei os melhores momentos do mundo e os personagens mais próximos a mim: minha mãe, meu pai, meus irmãos e irmãs, que eu fazia todos de pernas finas, sorridentes e felizes. Eu ficava no meio, ninguém tinha ido embora... Toda a poesia da vida ficou naqueles grafites, de onde eu nunca saí.

Nilze Costa e Silva

Thursday, November 02, 2006

Essa rua tem história


Do Centro Cultural Dragão do Mar, olho a rua que se estende, não muito longe. Mas o que houve com ela, encurtou? Ou encurtaram meus passos, quiçá minha visão de adulta? Nos meus tempos de menina esta rua era imensa. Pois por ela meninei, logo que cheguei da minha cidade Natal, com pouco tempo de vida. Aos treze anos me fui, olhos molhados, rumo ao desconhecido. A parte boa da minha vida e o maior espaço de tempo também, devo dizer que vivi na casa de número 410 da Rua Dragão do Mar. Foi esta a rua que me viu ensaiar, em câmara lenta, os primeiros passos trôpegos e já incertos. E acalentou os indecisos sonhos de uma adolescente insegura e tomada por paixões fáceis, até pela rua. Lá minha alma terrena conheceu o primeiro amor, nunca retribuído. Também foi ali que derramei a primeira lágrima ao ouvir no rádio antigo de meu pai uma canção do Vinícius falando da saudade e da tristeza de partir:
“Ah, vontade de ficar, mas tendo que ir embora...ai, que amar é se ir morrendo pela vida afora, é refletir na lágrima um momento breve de uma estrela pura cuja luz morreu, de uma noite escura triste como eu...”
Olho a Praça do Avião, hoje tão festiva e iluminada e lembro que era lá que meu pai nos levava, a mim e aos irmãos, nas tardes de domingo, a passear de velocípede. Naquele tempo a rua Dragão do mar era marcada por um apartheid que eu não entendia muito bem. No primeiro quarteirão, a partir da Capitania dos Portos, havia uma zona de prostituição, onde reinavam a famosa Maria Cabelão e os homossexuais Elvis Presley e Zé Tatá. Esta era uma zona socialmente proibida para crianças e adolescentes. Mas se tínhamos mesmo que passar por lá, deveríamos descer a calçada, pois era até pecado olhar as casas, os adultos diziam. O próximo quarteirão, da Travessa Itapipoca até a Rua Tigipió, era onde ficava a “calçada da Jonhson”, o reduto da meninada, para os jogos de bila, arraia, manjô e macaca – hoje essas brincadeiras têm outros nomes que me recuso a traduzir por saudade e despeito. A partir dali, a rua subia num morro de areia. De um lado, um pântano e um córrego, onde as lavadeiras lavavam as roupas dos que ficavam embaixo, na parte calçada. Do outro lado, um terreno murado, onde nos deparávamos com inscrições obscenas e desenhos pornográficos. No inverno, as águas da chuva desciam vertiginosamente ladeira abaixo, indo desembocar num esgoto – era a nossa cachoeira em miniatura. O melhor programa da época: tomar banho de chuva e observar os caracóis indolentes na sua caminhada interminável e os peixinhos ágeis, que nos escapavam das mãos. Era ali que deixávamos sem rumo os barquinhos de papel que a correnteza levava.
Rua Dragão do Mar, túnel dom tempo. Viajo nas lembranças e na dolorosa certeza de que não se pode preservar ao menos os cenários dos tempos bons da infância. Novas cenas e novos personagens invadiram minha vida. Mas quando durmo e sonho, nem Freud explica o porquê de, na maioria das vezes, estarem lá, todos na casa grande, onde hoje cabe bem mais gente - como se eu nunca me tivesse me apartado de Iracema.


Nilze Costa e Silva

Cidade da Criança



Nilze Costa e Silva

Num dia qualquer da minha adolescência saí para namorar e ficamos lá, comendo pipocas. Nem demos pipocas aos animais. Pipocas haviam, muitas. Eles é que não estavam mais lá. Entre aconchegos e juras de amor, divaguei, fugi, viajei. Meus olhos divisaram todo o parque, como se numa outra dimensão. A dimensão do passado. Deixei longe o meu namorado.
A Cidade da Criança (ou Parque da Criança, como também é conhecido), nos meus tempos de menina era ornamentada por frondosas árvores, onde os pardais entoavam um canto estridente que se ouvia de uma ponta a outra do arco-íris. Se alguém não ouvia era porque não queria. Os pássaros estavam lá e o arco-íris também.
A cidade da minha criança, da criança que fui e que tantas vezes ainda sou, era um local alegre, com parques de diversão, sorvetes coloridos, maçãs do amor, rodas gigantes e muitos, muitos casais de namorados. Papai Noel recebia as chaves de Fortaleza e lá pousava, vindo dividir seus brinquedos com a meninada. Haviam animais presos nas jaulas, onças, tigres, macacos e as mais belas aves com suas plumas coloridas a nos encantar a vista.
Já faz tanto tempo... O namorado se foi, outros vieram. Hoje sinto-me madura e lúcida, mas o parque ainda está lá. Os bancos, as árvores e os pardais continuaram. A cidade da criança foi se transformando e ficando triste. Num outro momento, as crianças da Escolinha Alba Frota ainda brincavam de três três passarás. Se não for o da frente há de ser o de trás. Algumas se arriscavam a desfilar sobre a pérgula do lago, que passou a ter um cheiro esquisito e desagradável. As folhas das árvores escureceram com a poluição dos ônibus que circulam pela Praça Coração de Jesus, em frente. Por trás do gradil que rodeia o parque (que parque?) alguns seres pequeninos espiam. São as crianças sem teto e sem lar. Têm fome, assaltam, saqueiam, cheiram cola. Fim de tarde, a Escolinha Alba Frota encerra mais um dia de aula. Sadios e risonhos, os pequenos estudantes retornam ao lar.
À noite, outros meninos e meninas invadem o parque. São buliçosos e estridentes como os pardais do dia. Vêem arco-íris e sobem por eles. Percebem sorvetes coloridos sem poder alcançá-los, na ilusão da cola. Dão piruetas, invadem a escolinha e roubam. A Cidade da Criança é só deles. Cansados da noite, correm aos bandos e vão dormir, pelos bancos das praças, que já é outro dia.
Hoje, a escolinha não mais está lá. Teve que se mudar, pois as crianças de dentro eram ameaçadas pelas de fora, que não tinham os mesmos direitos. Então a Prefeitura resolveu que o parque se transformaria num pólo aglutinador das várias entidades que defendem a cidadania daqueles meninos e meninas abandonados. E foram construídas casinhas coloridas onde funcionam a Fundação da Criança da Cidade, O Conselho Tutelar, O Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente. Vê-se poucas crianças por lá. A cidade, agora com casinhas tão coloridas, parecendo ter vindo dos contos de fadas, não é mais delas, embora digam que é para elas. Ainda estão lá fora a mendigar, a roubar, a delinqüir, entregues ao ócio do abandono.
Cidade da Criança... Hoje, tantos anos passados, eu queria era mesmo poder dizer que ela permanece bonita como antigamente. Reunir as pessoas, juntar os pedaços do passado como um quebra-cabeça que se concertasse e colocasse no lugar todos os cacos quebrados... Ver novamente o lago limpo e cheiroso, as árvores viçosas, os animais vaidosos, expondo seus reluzentes pêlos e plumas e as crianças felizes espreitando-os por entre as grades. Tenho medo que nem os pardais fiquem e partam em revoada para outros locais mais alegres e arejados. Que fujam com medo do barulho, da poluição, das injustiças. Que partam para bem longe, a lamentar com seu canto triste que esse parque, essa cidade, já não é mais da criança.

O PROFETA


Nilze Costa e Silva

Um vidente chamado Jucelino Nóbrega da Luz fez duas previsões para o Brasil: uma ruim e a outra péssima. A ruim: Lula não será reeleito presidente do Brasil. A péssima: entre 1º e 25 de novembro de 2013 uma tsunami atingirá o Nordeste, inclusive Fortaleza. Essas previsões do médium foram feitas em dezembro do ano passado. Segundo disse nas diversas entrevistas que tem dado por aí, ele sonha e é orientado a avisar às pessoas, instituições ou governos sobre o que irá acontecer.
Em 2013 eu não sei se vou estar viva. Mas por via das dúvidas, já tinha planos de me mudar para Serra de Maranguape, onde o maravilhoso poeta Manoel Bandeira esteve em meados do século passado, não para fugir de uma tsunami, mas à procura de clima aprazível e adequado para tratar-se de uma tuberculose.
Na maioria das vezes os profetas costumam usar as evidências e a intuição para se saírem bem em suas predições. Sempre erram mais do que acertam. Uma das famosas que muito errou foi a Mãe Dinah. Neste ano apostou no Brasil como hexacampeão, caso não sofresse “influências monetárias” da Alemanha. Errou. Nem um nem outro lograram êxito.
Com relação às eleições de 2006, a profecia de Jucelino contraria todas as pesquisas que apontam Lula como futuro Presidente do Brasil. E se ele for reeleito, como vai ficar o vidente? No mínimo saberemos que não haverá tsunami alguma em nossa cidade amada, somente a alegria, esperando que as instituições democráticas respeitem a vontade do povo, confiante de ter eleito o melhor. E que não ousem dizer que Lula foi eleito “por um povo analfabeto e burro”. Seria desrespeitar demais o eleitorado consciente do nosso País.
Mas voltando ao tema inicial e tendo em vista as previsões dos institutos de pesquisa para o dia 29 de outubro, já desarrumei minha bagagem. Digam ao povo que eu fico na minha linda Fortaleza de belas e irresistíveis praias. E deixa o “homi” trabalhar!

Nilze Costa e Silva é escritora e coordenadora da ONG NAVE.